segunda-feira, fevereiro 24

Correntes d'Escritas

Lá estive, foram muitas e bem felizes as surpresas, mas vai demorar a que me recomponha das impressões e reveja o que pensava de festivais literários. Se puderem ser todos assim, com gente assim, organização sem falha, cortesia exemplar, estamos de parabéns.
A ideia era outra, mas não pude ir além da falação que segue.

Porque sou avesso a minúcias, apressado por natureza, e atreito a momentos de distracção, acontece-me com frequência tropeçar em detalhes e conclusões, interpretar  errado o que leio ou o que me dizem.
Sofro também de uma dose anormal de desconfiança, de maneira que, ao receber o tema desta mesa, "Não são minhas as correntes que escrevo, é outro que as escreve em mim", não li o que lá estava.
Trocando o "em mim", pessoano e esotérico, por um desconfiado "por mim", fui levado a supor que os autores do tema, desejando criar neste salão literário um suspense de telenovela, de certeza esperavam que cada um de nós, vestindo o sambenito do condenado em auto-de-fé , viesse revelar o nome do ghost writer, do amanuense a quem paga.
Se uma segunda e mais cuidada leitura, me permitiu descobrir o erro em que tinha caído, de forma alguma deixei de me preocupar.
Pode ser que me engane, pois não vejo fumos de incenso, nem a mesa pé-de-galo, mas isso não obsta a que, com falso pretexto, me tenham atraído ao que, sob a aparência de um festivo evento das Letras, seja de facto uma refinada sessão espírita.
É que só assim explico a inquietante curiosidade de quererem espiolhar acerca desse outro que, pelos jeitos, escreve em mim.
Será que isso de facto acontece? Acreditam Vossas Mercês em diabinhos que sabem dactilografia e sintaxe? Ou que, escondidos nas profundas, se agitam na massa cerebral incubus dados à Literatura? Terá alguém trazido do Oriente  uma poção mágica que os organizadores distraidamente beberam?
Seja como for, e com pena de não responder pela afirmativa, devo confessar que, na vivência do meu corriqueiro dia-a-dia, não há lugar para o  sobrenatural. É tudo trabalhinho, paciência, teimosia, dores nas costas, cefaleias. Frustrações também. E perguntas sem resposta.
Tivesse eu uma diabinha ou um satanás a escrever em mim! Que bom seria!
Infelizmente, assim não é.
Herdeiro do pecado original, na acepção bíblica do termo sou um desgraçado, aquele a quem foi negada a graça do Senhor, e por isso tem de ganhar o pão com o suor do rosto, e alinhavar ele mesmo a prosa que, talvez por isso, raro sai a preceito.
Todavia, a franqueza obriga-me a fazer uma ressalva. É facto que numa ou noutra altura, abrindo ao acaso um livro meu, ou lendo uma citação que alguém de mim fez, tem-me acontecido dar com uma frase que não recordo e me parece escorreita.
Durante um segundo, talvez dois, sou tentado a ver ali a misteriosa intervenção do sobrenatural, e a sentir-me ungido pela divindade, mas pouco tarda a que caia  em mim, reconhecendo os sintomas da amnésia.

Isto dito, creio que se impõe a conclusão de que foi erro o terem-me convidado para uma tertúlia em que me vou ver mal para participar.
E deixem que termine com um aviso. Embora não disponha de um outro que em mim escreve, de forma alguma pretendo negar o fenómeno, é mesmo provável que entre os colegas de mesa haja mais que um abençoado.
Se assim for peço que ele, ou ela, entre no assunto de mansinho, porque os anos e a pressão arterial me impedem as emoções fortes.
Sei que resistiria mal ao choque se, a modos de aparição, eu visse materializar-se junto do colega o outro que nele escreve. E estou que, junto com o susto, um ataque de inveja acabaria comigo.