segunda-feira, dezembro 17

O madeiro

É uma cruz. Levezita. Pouco mais que um incómodo. E os ingénuos que me obrigam a carregá-la só se dão conta do que fazem e dizem quando, perdida a paciência, começo a rabiar.
Querem eles saber se esta ou aquela figura de livro meu é personagem autobiográfica, ficam de olho arregalado e a boca salivando no aguardo da resposta.
Favorito é A Amante Holandesa, onde um homem triste e desencantado se dá ao prazer inocente de mirar fotografias e desenhos de jovens corpos femininos.
Um dia, uma desarvorada não se conteve, chegou tão perto que lhe senti o bafo e, num sussurro, quis saber se "aquele era eu". Estive vai-não-vai para consolá-la, tanto mais que o olhar da dama prometia confidências, mas desisti, desapontei-a com a verdade.
 "Aquele" não sou eu. Se de algum modo há pedaços de mim no que escrevo, nunca o leitor, nem mesmo o que nasceu adivinho, terá a arte precisa para destrinçar o que tranço.