quarta-feira, janeiro 25

Último acto

Vai do quarto para a cozinha, entra na sala, debruça-se na varanda. Apaga o cigarro. Não sabe como lho dirá, sente-se sem ânimo. Tantos dias pronto a decidir, outros tantos a adiar, cansado de desculpas e explicações, das mentiras transparentes, dos enganos, do fingimento. Amedrontado também, porque não dizê-lo, com o modo como ela, calma e incansável na espera, lhe faz sentir que sabe, mas terá de ser ele a confessar.
Retorna à cozinha. Ensaia frases que logo descarta por irresolutas, fraca desculpa. Absorto, pega nisto e naquilo, arruma os copos, aparta uma faca. Acende outro cigarro, encosta-se ao fogão.
Ouve-a rir ao telefone, com certeza a falar com a irmã, e assim que terminar lho dirá. Sem rodeios. Aperta o estômago, a acalmar a náusea. Bebe um copo de água. Olha em redor, indiferente ao que vê, tomado de um sentimento de perda e despedida. Pára no corredor, hesita, entra na sala.

- Espera um momento, Laura.
Vê-a tapar o microfone do aparelho com a mão e aproximar-se, apontando o sangue que  pinga no soalho:
- Que é isso, Manuel?
Só então repara no golpe que, sem sentir, tinha dado no polegar.

São dois que se revezam e não cessam de perguntar, mas ele jura que depois daquele instante nada recorda.

O pano cai, os actores voltam à cena, o público levanta-se a aplaudir.