segunda-feira, julho 11

Fodilhões

Desenterrámo-lo ontem ao almoço, já na sobremesa, um disse que a casa estava a precisar de telhado mas ninguém sabia do paradeiro da filha, que tinha vivido em Coimbra e anos depois desaparecera em Lisboa.
- Deve ter quê? Oitenta?
- Por aí.
Foi então que se recordou o senhor Valentim, o pai, um reformado azedo, com terras de seu, o jornal sempre debaixo do braço, em casa ou na rua o chapéu enterrado na cabeça.
- Tinha sido da Guarda.
- Usava uns óculos redondos, pequeninos, com aros de aço.
- Como os Beatles.
- Nesse tempo não havia Beatles.
- E bigode à maneira do Himmler.
- Quem era o Himmler?
- Deixa lá.
Continuámos a lembrança do sargento, que na meninice nos assustava com a tesura do modo, o olhar inquisitivo e a ameaça da bengala ao passarmos perto.
- A mulher também era fraco traste. Tratava a Adozinda como se fosse escrava ou preta da África.
- Pior.
- O Valentim emprenhou-a.
Como  os clichés se gastam não vou dizer que a revelação caiu como uma bomba, mas a surpresa foi grande, o silêncio demorado.
- Então a...?
- É filha, pois claro.
- Quem haveria de adivinhar que o gajo era fodilhão!
De nome em nome descobriram-se ali mais uns quantos insuspeitos bastardos do sargento, reviu-se a história das famílias, nossas e alheias, passou-se a esponja sobre os pecados dos falecidos. Mas qualquer coisa ficou, um incómodo, quando nos despedimos ninguém quis marcar data para o próximo almoço.