quinta-feira, setembro 2

Sem rei e sem Deus


Eles, e agora também elas – teremos de arranjar  pronome pessoal para o conjunto, que o eles é machista – discutem, analisam, criticam, propõem. São a favor uns, outros são contra, mas todos mudam, reviram, esquecem, juntam-se, desunem-se, instáveis e irregulares como as ondas do mar.
Sabem de política e futebol. Argumentam e tratam longamente, exaustivamente, de política e futebol. Fingindo esquecer que a política é para poucos e o futebol  reserva particular dos engravatados da FIFA que, com a franqueza bruta da economia de mercado, mostram que mandam nos governos, não se lhes dando que cor têm.
Sabem de rock e carros topo de gama, cinema, Scarlett Johansson, Monica Belluci, Derrida, Duchamp, sabem até das razões do Irão e das desigualdades do Iraque, da Palestina, da União Europeia.
Mas é fachada. Só fachada e medo, cortina de fumo, porque se sabem… Não. Porque nos sabemos, sem rei e sem Deus. Porque continuamos a ser os Alpedrinhas, “das nossas terras palreiras da vanglória e do vinho.”
“Desventuroso Alpedrinha!  Tu eras o derradeiro Lusíada, da raça dos Albuquerques, dos Castros, dos varões fortes que iam nas armadas à Índia! A mesma sede divina do desconhecido te levara, como eles, para essa terra de Oriente, donde sobem ao céu os astros que espalham a luz e os deuses que ensinam a lei. Somente não tendo já, como os velhos Lusíadas, crenças heróicas concebendo empresas heróicas, tu não vais como eles, com um grande rosário e uma grande espada, impor às gentes estranhas o teu rei e o teu Deus. Já não tens Deus por quem se combata, Alpedrinha! Nem rei por quem se navegue, Alpedrinha!... Por isso, entre os povos do Oriente, te gastas nas ocupações únicas que comportam a fé, o ideal, o valor dos modernos Lusíadas – descansar encostado às esquinas, ou tristemente carregar fardos alheios." (*)
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(*) Eça de Queirós – A Relíquia