sábado, junho 5

"Pouca-terra, pouca-terra"


Sonhar é fácil. Decidir ou fazer pede tempo e uma força de vontade que me escasseia. Vou esquecendo planos e boas intenções, perco-me na actividade inútil das memórias longínquas, divago sobre o que poderia ter sido e não foi, o que provavelmente não vai ser. Ironizo sobre os meus vizinhos que, imóveis, passam manhãs e tardes à sombra, especulando sobre o tempo, mas eu próprio gasto os dias numa imobilidade budista, deslizando para a penumbra onde presente e passado se fundem. Com preferência para o passado, diga-se.

Vá-se lá saber porque me ponho a enumerar que em Vila Nova de Gaia, no tempo da minha afastada infância, no nosso largo o chão era de terra, as casas não tinham luz eléctrica nem água encanada. O rádio acabara de chegar, mas só no fim da guerra seria comum. Televisão? Nem nela se sonhava. Os raros aviões eram biplanos de um só motor, o esqueleto revestido de lona, ronceiros, voando baixo, o piloto a acenar. Automóveis? Muito poucos e com manivela para o arranque. Comboios puxados por forçudas locomotivas a vapor, negras de carvão, matraqueando "pouca-terra, pouca-terra". Plástico, detergentes, antibióticos, a esferográfica, a lâmpada fluorescente, os tecidos sintéticos, e mais, muito mais, tudo isso demoraria a ser inventado. Fumava-se em toda a parte, mesmo nas enfermarias, e o escarrar para o chão era hábito corrente. O nariz assoava-se em lenços de pano e quem os não tinha usava os dedos.

Na Lua havia gente.

Isto para dizer que, como indivíduo, tive a sorte de me criar no mundo velho, e assistir à sua incrível evolução durante o último meio século. Tive também a sorte, mas essa quase à justa, de visitar lugares e países realmente exóticos, pois deles pouco mais se conhecia que os relatos de um ou outro viajante e as fotografias a preto e branco que destravavam a imaginação. Mas depois, aí por meados da década de 80, para mal meu e de mais uns quantos, mas para bem da imensa maioria, tudo revirou: as belas paisagens, os lugares de sonho foram afogados pela banalidade da massa.

Engano-me? É mais que provável. Incapaz de deixar que me arrastem, estou convencido de que só fora da multidão se vive.