sexta-feira, março 12

Dia de malas


Esquece-se a tosse, baixa-se a febre à custa de pílulas, hoje é dia de malas, amanhã o da partida para a terra.

Vontade de viajar? Pouca, porque antecipo os aborrecimentos, as decepções, as mil pequeninas coisas que azedam os dias, as pequeninas trafulhices, as pequeninas maldades, o desleixo e o descaso.

Vou ter de pagar multas às Finanças, porque não consigo ser ubíquo como Santo António. Vou ter de palestrar com o senhor Octávio para que venha dar um jeito ao beiral que sofreu com o vento. Palestrar longamente, ouvindo-lhe os achaques, as operações da esposa, a obrigação que agora tem de assistir a senhora Felisbela das azeitonas.

Com o Sebastião vou ter de almoçar, porque doutro modo arrasta o conserto da caldeira do aquecimento. Almoço de duas horas pelo menos, e muita paciência, porque o Sebastião aprecia detalhar e minuciosamente detalha, desde o funcionamento do "arranque" à necessidade de cavilhas diferentes e umas resistências novas que só a ele fornecem. E a chaminé tem de vir abaixo, os suportes têm de ser mudados, o manómetro idem, se aguentar um mês é muito. Mas sou eu quem manda, ele só quer avisar.

Adiarei a visita a certa repartição, onde a única funcionária atende quem lá entra com o fácies, o modo e a voz de carcereira de Auschwitz.

Temo já as situações que só se resolvem metendo "cunha", pelo simples facto de que sou avesso ao hábito, mas também porque, in extremis, não tenho quem me ajude a metê-la.

Há ainda um ponto que me traz murcho: o das amizades. Elas em Portugal nascem, desaparecem, esquecem, renascem ou renovam-se ao sabor de misteriosas correntes, volúveis e incertas, imprevisíveis, fortes nos abraços, cheias de desculpas. Amizades farfalhudas, sem cortesia nem respeito. Amizades-pirilampo, fugazes no brilho, duradouras no aborrecimento.


Se não houver sobressaltos nem contratempos de monta, quarta ou quinta-feira retomamos a conversa.