quarta-feira, junho 4

A realidade neerlandesa em forma de sonho (3)

Devo de reconhecer que, talvez por osmose, nesse tempo a minha visão da Holanda, do mundo e de mim próprio, era igualmente pessimista. E, antes disso me dar conta, cometi o erro de confiar ao papel o que me impressiona­va e o que mais me incomodava na sociedade em que voluntariamen­te tinha feito ninho.
Não é que me arrependa ou queira desdizer. Falo de erro porque, vistas à distância e através dos filtros que a idade empresta, as minhas críticas de então mostram que foram antes escritas para entreter do que para corrigir, que não são verdadeiras críticas, mas a expressão dum modo muito latino de brincar com coisas sérias.
Passado um quarto de século sobre esse peché de jeunesse, a maioria dos holandeses que me leram não se devem ter sentido ofendidos com as farpas com que os piquei. Ao meu conheci­mento, até hoje chegaram apenas três casos de aversão rabienta, por parte de gente que, se pudesse, me despacharia presto para os fogos do Inferno ou para a terra donde vim.
O primeiro caso foi o de uma senhora grega, acerbamente neer­landófi­la, que durante meses bombardeou os jornais com cartas a solicitar a minha extradição. O segundo, um sujeito de Rotterdam que, também nos jornais, se queixou de que eu não tivesse capacidade para reconhecer a superior qualidadde gastronómica da costeleta temperada com sal e pimenta, frita em molho de manteiga, servida com acompanhamento de puré de batata e couves do Bruxelas cozidas simplesmente em água. O terceiro é um sacerdote que, vinte e cinco passados sobre a leitura do meu livro, me dizem que continua assanhadamente a excomungar-me em privado e em público, talvez porque a minha prosa tocou naquelas feridas que mais lhe doem.

Ao divagar assim, impensadamente me distraio da hiber­nação que atrás citei e na qual, como disse, às vezes me coloco para, de modo diferente, poder considerar o que então me rodeava e a pessoa que eu então era. Seguidamente, quando dela acordo, dou-me a ilusão de que encaro o que me rodeia com um olhar fresco e o espírito lavado. Uma forma de renascimento.
Desse modo, e melhor do que se viajasse na máquina do tempo que Wells imaginou, creio poder observar a Holanda de maneira inédita, comparando a de hoje com a de duas décadas atrás, des-cartando o que entretanto aconteceu no desenvolvimen­to do país e do seu povo, rejuvenes­cendo a minha atitude.
A primeira grande surpresa ao acordar subitamente na Holanda de 1997, sem dúvida a maior de todas, seria verificar a generali­zação do optimismo. Incrível! Os holandeses, em massa, a afirmar que tudo corre bem! Desde a limpeza das ruas aos ganhos da Bolsa, das exportações da indústria aos êxitos da economia.
Não somente o homem da rua e o burguês reagem assim mas, inopinado, verdadeira­mente espectacular, nas bancadas do Parlamento e nos debates da televisão, em artigos de jornais, os políticos - o que ninguém antes os viu fazer - confirmam que tudo vai bem. Mais surpreen­dente ainda, e ao contrário do que deles seria de esperar, já não assustam os eleitores com previsões sombrias, mas quase garantem que o futuro será para todos deliciosamente rosado.
Surpresa seguinte. As férias. Desde o tempo em que navegando por mares longínquos alcançou paragens exóticas, o holandês deve ter sido picado por bicho que, simultaneamente, o inocolou com os micróbios da inquietação e da curiosidade. A ubiquidade mundial das dragas, dos rebocadores, dos marítimos e dos homens de negócio holandeses, provavelmente vem daí, mas baseia-se também na solidez de necessidades e resultados práticos. Mas é no fenómeno das férias que o bicho demonstra plenamente as curiosas e funestas consequências da sua picadela.
Duas, três décadas atrás, quando as viagens ao estrangeiro começaram discretamente a entrar nos costumes, o holandês ia ao longo do ano arrecadando parcimoniosamente os seus ganhos, punha uma parte grande a render no banco e, como antes apontei, de tenda e saco às costas, com o resto arriscava-se a descer até aos longes da Dordogne e da Ardéche.
Hoje ele próprio terá dificuldade em reconhecer a pessoa que foi e o seu tímido comportamento de então. A Côte d'Azur, como Paris, Londres, Roma, ou até New York, tornaram-se-lhe lugares onde vai dum salto, com o simples intuito de neles passar o fim-de-semana.
Porque férias neste fim de década, verdadeiras férias, requerem longes e exotismos que no globo terrestre começam a faltar. Quatro, cinco vezes por ano, o holandês abandona em massa o país para sequiosamente visitar a Indonésia, o Japão, o Alaska, subir o Everest, nadar em Acapulco ou no Rio de Janeiro. Encontram-se holandeses na Patagónia e no sul do Egipto, na Nova-Zelândia, nas estepes do Canadá, nas Aleutas e em Bangladesh.
Começando por Fevereiro vêmo-lo a caminho dos desportos de Inverno. Em Março ou Abril goza as férias da Páscoa. Dos princípios de Junho aos fins de Agosto é o grande êxodo das férias do Verão. Em Outubro há as férias escolares. Entre Dezembro e Janeiro o país pára para gozar as férias do Natal.
No momento alto do êxodo do estio, quando , segundo as estatísticas, mais de cinquenta porcento dos habitantes abandonam apressadamente o país, as férias talvez não sejam, como se julga, a demonstração de um desejo de repouso, mas o resultado de um comportamento instinti­vo, que mistura a curiosid­ade de procurar o que é exótico, com o afã de fazer como os outros fazem e de ir para onde os outros vão.
Desse modo os holandeses, que frequen­temente asseveram querer escapar à sufocante presença dos seus compatriotas, comportam-se um pouco como os bandos de estorninhos: fogem em voo desordenado para aqui e para ali, dão umas quantas voltas e acabam por pousar quase que uns sobre os outros nos ramos da mesma árvore.
Regressam depois à pátria, desencantados e queixosos, garantindo que da próxima vez irão para regiões mais afastadas, mais desertas, não se dando conta que os seus concidadãos fazem raciocínio idêntico.
A massificação do lazer, bem o sei, ocorre em todo o mundo, mas tem na Holanda consequências e alcança proporções fora do corrente, a ponto de me dar a impressão que os antigos objectivos dominantes da existência: o amor, o trabalho, a família, a fé, foram relegados para segundo lugar pela absurda necessi­d­ade de apressadamen­te se viajar para determinado destino.
Uma vez lá chegado o viajante mostra um único desejo: repousar. E uma vez repousado vai então indolente­mente andar às voltas em torno de palácios e de igrejas, embasbaca nos museus, faz-se transpor­tar aos cumes dos montes, nada no mar. Vê muito? Com certeza vê. Aprende alguma coisa? Duvido.
De retorno ao ninho tomam-o de imediato os sintomas próprios das aves migrado­ras. Tudo nele é inquietude, ânsia de voar para longe. Passa os dias apreciando vagamente o que come, observando distraído aquilo que o rodeia e, amodorrado, cumpre as suas obrigações. Mas no momento em que o correio lhe traz os catálogos das agências de viagens, os seus olhos, até aí mortiços, ganham a acuidade dos das aves de rapina. Da mesma maneira que a águia ou o abutre caem em voo picado e infalivel­mente seguram a presa nas suas garras, assim o holandês abre o catálogo na página exacta, num relâmpago calcula o preço, telefona a reservar, e desse momento em diante só conhece um fito: partir.