domingo, fevereiro 10

A Ínsua, na foz do Minho

Nessa altura o senhor Viriato andaria pelos cinquenta, mas comparado com meu pai fazia figura de ancião.
Estatura mediana, encorpado, mãos desmesuradas, vestido de remendos, nas tardes de domingo senta­va-se connosco no areal e aceitava um copo de vinho, ou ele próprio ia buscar o gar­rafão que trazia sempre na masseira, para oferecer uma pinga a quem lhe mereces­se simpati­a.
Mais amigo de ouvir que de falar, entretinha-se na vistoria dos apetrechos da pesca e, de quando em quando, levan­tava uns olhinhos de réptil, a mos­trar que seguia a con­versa.
De repen­te resmungava frases des­conexas e, sem expli­cação nem despe­dida, levantava-se, aman­hava a rede, pegava nos remos e metia-se no barco de volta à Ínsua.
Eu, que só os ouvia inte­ressado quando falavam de tiro­teios e perse­guiçõe­s, subia ao alto da duna a acompanhar o progresso lento do barco. Via-o passar da calma do rio para a ligeira ondu­lação da foz, acavalar-se depois nas ondas, até que chegava à língua de areia da ilha, onde o mar que­brava.
Seguia-lhe a manobra, via o senhor Viriato curvado no esforço de puxar o barco para seco, retirar a rede, estendê-la entre os remos, encami­nhar-se lentamente para o forte, e desaparecer na mural­ha. Como um pirata, imagi­na­va eu.
Em rapaz tinha andado embarcado. Conhecera o Brasil, a Améri­ca, a costa de África, os ciclones, os trabalhos do Cabo Horn. Um dia em que eu o fora ajudar na apanha dos mexilhões nos penedos, pusera-se a contar as suas aventu­ras, como que tomado por um irresistível desejo de confissão. Entre­me­ando longos silê­nci­os que me faziam sentir culpado, porque talvez lhe não prestasse atenção bastante, ou a minha pouca idade me não permitisse avaliar tanta confidência. De súbito, num dos seus repentes, tinha-se virado para o mar e, esten­den­do o braço, assegurou-me que quem fosse capaz de seguir por ali fora, como por uma corda esticada, chegava a Boston.

Eu próprio chegaria a Boston anos mais tarde, por vias bem travessas. Em Nantas­ket Beach, num momento de eufo­ria, iria surpreender-me a recordar a corda mítica com que o senhor Viriato unira a América ao forte da Ínsua.
Sentado na areia fitando o orien­te, voei como num sonho para as paisa­gens e os rostos da minha adolescência. A reviver as alegri­as, os entu­sias­mos, os amores, como se tudo fosse intemporal e infindo, meu para sempre.
Só depois me viria a dar conta que, nessa altura, eu desconhe­cia o verdadei­ro peso da nos­talgia. Quando evoca­va recor­dações, não precisava como agora de ir buscá-las a um passado longín­quo, cheio de perdas irreme­diávei­s, porque todas elas se achavam confort­avel­mente próxi­mas.
Então, o avivá-las, ainda não era dor, apenas distração do pensa­men­to.