sexta-feira, fevereiro 22

Lanhelas - 1946

À chegada a Lanhelas estranhei a casa. Com os seus dois anda­res e arrumos, estrebaria, o pomar em volta, a nascente donde a água brotava para um tanque com rãs, pareceu-me demasiado grande para os meus pais e para mim. E soturna, como se encerrasse uma ameaça.
A paisagem de campos e bosques que se via do meu quarto, o rio, as serra­ni­as, a nesga de mar ao pé de Santa Tecla, isso de facto sedu­ziu-me. Mas era sere­nidade demais, beleza demais, um equilíb­rio tão perfeito que logo me faltou a desor­dem e o bulício a que me tinha habituado, quando da minha janela em Gaia olhava para o Porto.
Aqui tudo respirava paz. Em vez da cacofonia citadina os ruídos eram distintos, cada galo esperava o seu momento de poder cantar, o ladrar dos cães espaçado como um diálogo. Na estrada o trânsito era quase nulo. Durante o dia inteiro passavam na linha uns quatro ou cinco comboios, mas o silvo das locomo­tivas e o matra­quear das rodas nos carris ouvia-se de longe, ia crescendo gradualmente, chegava, dimi­nuía, era apenas um traço sonoro a vibrar por instan­tes na quie­tude do ar.
Casas a fazer rua só as havia no centro da aldeia. As outras espalhavam-se pela encos­ta, nos campos próximos da estrada, juntavam-se aqui e além num beco. Por isso, junto da nossa, raro se ouviam sinais de gente, e era surpresa maior quando, chuva ou sol, os ranchos que tra­balha­vam nas leiras subitamente entoavam em coro as canti­gas dolen­tes da tradição, a alegre harmonia das quatro vozes cobrindo, como um véu, a tristeza e a saudade dos versos que falavam de amores perdidos, de ausências, felicidades nunca sentidas.
É certo que havia o dinheiro do contra­bando, mas esse infe­lizme­nte não cabia a todos. Para ganhá-lo era preciso mostrar força, ter capacidade de sacr­ifíci­o, gosto do risco, um traço de crueldade, e indiferenças de carác­ter que poucos pos­suíam.
Por isso a aldeia tinha a sua élite de con­trabandis­tas e uma infantaria de carrejões, pescado­res-espias, moços de recados. Abaixo desses viviam os jorna­leiros do campo, os serventes das pedreiras, os quase pobres de pedir, que levados pela fome iam emigran­do em peque­nos saltos. Primeiro a pé, para Viana. Meses de­pois, arranjado um pecúlio e um fatin­ho decen­te, de comboio para o Porto. Mais meses, ou anos, de comboio para Lisboa. Até que, poupando migalhas, lhes chegava a hora de comprar passagem no navio e fazer a grande tra­vessia para o desconhe­cido do Bra­sil, da Améri­ca, do Ca­nadá, para onde iam com o credo na boca e um grande medo de que a vida lhes cor­resse mal.