sexta-feira, setembro 21

Vizinhanças

Devido ao desnível do terreno, a varanda da Aida, no outro lado da rua, encontra-se muito acima do nosso telhado.
Talvez para arejar, as portas mantém-nas ela sempre abertas, e assim ficamos expostos a uma sinfonia de sons diversos: gargalhadas, conversas com as vizinhas que a visitam, discórdias com o Benjamim, o trac-trac da máquina de costura com que coze pijamas para a fábrica...
Ao fim e ao cabo barulhos aceitáveis, domésticos, que quase naturalmente se fundem com os nossos e os restantes.
Mas às cinco em ponto a Aida liga o rádio, aumenta o volume do som e, com o entusiasmo da fé profunda, junta a sua voz à dos padres que na Rádio Renascença celebram as vésperas, entoam cânticos à Virgem e ao Cristo Rei, dizem depois a missa, seguida de pregações.
O bombardeamento obriga-nos a fechar portas e janelas, mas o sossego que isso traz é relativo. Às sete, terminam os responsos, mas já a Aida liga a televisão para acompanhar a telenovela. Às oito tem o telejornal. Às nove outra telenovela.
Se fizéssemos reparo ela não compreenderia. Então não rezamos? Não gostamos da telenovela de que todos gostam? Não seguimos as notícias?
É infernal. É de pesadelo. Devido ao calor dormimos com as janelas abertas e a meio da noite acordamos em sobressalto, a rua estreita cheia de cães. Tantos e tão agitados que não consigo contá-los, as correrias, os uivos, os latidos e grunhidos a multiplicar-se em ecos de entontecer.
Atiro-lhes pedras (tenho um saco de plástico cheio delas no peitoril), mas não se assustam nem se doem, porque cuido de não acertar no alvo. Atiro-lhes bacias de água. Desesperado e ridículo grito-lhes que se calem, que parem com a barulheira.
Escanzelados, as línguas pendentes, no espaço apertado demais para tanto bicho parecem uma onda peluda, que ora vai, ora vem, ou de repente estaca na sua ondulação.
Até que dentre aquela matilha de todos os tamanhos e feitios, alguns pastores e perdigueiros, mas em maioria vira-latas de pouco porte e pata curta, se escapa a diminuta causa do burburinho: a cadela do Guilherme.
Do nariz ao rabo quatro palmos de bicho, mas um cio que faz entontecer os pretendentes, e o ar desdenhoso de quem se vai dali porque não encontra forma para o seu pé.